O relógio marcava exatamente 8h quando o juiz Márcio Cristófolli entrou na Sala do Júri. À sua direita, promotor, defensor público e réu. À sua esquerda, assessores, agentes de segurança e as cadeiras do júri. À frente, o plenário, ocupado por familiares aflitos e ansiosos, estudantes de Direito, alguns membros da comunidade e imprensa. Olhares não se cruzam. O réu cabisbaixo. No canto da sala, um advogado já aposentado, mas sedento por informação e apaixonado pelo Direito, observa tudo, sentado em sua cadeira de rodas.
Burburinhos ecoam aqui e ali. A voz do juiz silencia o ambiente. Ele inicia a sessão instigando a responsabilidade dos jurados, seus deveres, lisura e discernimento na tomada da decisão.
"São pessoas selecionadas com base na índole e caráter perante a sociedade para que a decisão seja tomada justamente", frisou.
O Júri, por sorteio, foi composto por quatro homens e três mulheres.
O acusado, Felix Guaragni, disposto no lado direito do magistrado, foi condenado pela morte de Rodrigo Mulinari, de 19 anos, Margarida Morais, de 48 anos, e Zélia Tavares Santana, de 22, mortos no dia 22 de janeiro, na cidade de Barra Bonita.
Segundo a denúncia, o réu foi acusado de usar uma faca de 20 centímetros para desferir golpes nas três vítimas. Para a acusação, a intenção clara de Guaragni era matar Margarida e Rodrigo, baseado em ciúmes e por não aceitar o fim do relacionamento.
A primeira vítima foi Rodrigo, ainda na parte de fora da residência. Na sequência, ele atacou a ex-companheira, já dentro da residência, caracterizando, nos autos como feminicídio. A última vítima foi Zélia Tavares Santana, que morava com Margarida e teria sido morta para assegurar a impunidade dos crimes, já que ela testemunhou os fatos. Segundo a acusação, as três vítimas foram mortas por motivo torpe e dificuldade de defesa.
Em depoimentos colhidos durante a audiência de instrução, uma das testemunhas, amiga de Zélia, que também era sua colega de trabalho, relatou fatos anteriores, como um dia em que estava na casa das duas vítimas e presenciou brigas e agressões por parte de Félix e foi ferida quando ele atirou um copo contra Margarida e lhe atingiu. Após esse fato, a testemunha afirmou que soube da separação, mas Zélia afirmou que ele continuava insistindo pela manutenção do relacionamento.
A mesma testemunha, disse que Zélia teria afirmado sua intenção de voltar para São Paulo, pois não conseguia conviver com as brigas e atos de violência entre o casal. Ela relatou ainda, que Margarida morou muito anos em São Paulo, onde conheceu Zélia e, que após uma visita, conseguiu emprego e foi residir em Barra Bonita, onde ficou por cinco ou seis meses. No dia do crime, ela havia falado com a mãe pela primeira vez em seis meses.
Na manhã do crime, minutos antes de morrer, às 12h27, Zélia ligou para a testemunha dizendo que se dirigia para o almoço, porém, nunca chegou. A testemunha foi em busca informação, já que a amiga não atendia o celular. Já era tarde demais, o crime já tinha acontecido.
Ainda conforme essa testemunha, Zélia teria contado que, no meio da semana, Margarida havia falado com Rodrigo. "No sábado ele esteve na casa de Margarida, quando Félix apareceu e, durante a madrugada, cortou o pneu da moto do rapaz", disse ela em depoimento.
Segundo a testemunha, Margarida e Rodrigo teriam iniciado um relacionamento e o acusado estava cercando Margarida, já que havia chamado ela pra sair, mas que essa se negou, afirmando que iria lavar roupas e não poderia ir. Porém, no dia seguinte ao convite, quando Margarida teria saído pra trabalhar, foi abordada por Félix, que disse que ela devia ter saído com outro, uma vez que não havia roupa no varal. O fato levou as duas a acreditar que Félix estava rondando a casa. Na véspera, Zélia não quis dormir na amiga, pois tinha medo de que algo iria acontecer em casa.
A segunda testemunha, essa filha do réu, falou da relação conturbada do pai com Margarida. Ela afirmou que os dois sempre brigavam e, que nos finais de semana, Margarida terminava o relacionamento, para sair com outros, e na segunda pedia para voltar. Ela disse ainda que Margarida também bebia e agredia seu pai. Para a testemunha, o pai voltou a beber por influência de Margarida. "Sem beber o pai era uma ótima pessoa", disse.
A filha do réu disse acreditar que Margarida não era fiel e que o pai sabia de situações, mas que nunca havia flagrado. Na sexta-feira que antecedeu a tragédia, segundo a testemunha, os comentários eram de que Rodrigo teria terminado com a namorada e se encontrou com Margarida. Zélia, por sua vez, deixou claro na cidade que o relacionamento de Rodrigo não era com ela, mas sim com Margarida. Para a filha, o crime só aconteceu por que pai flagrou a traição de Margarida com o Rodrigo.
Ela não soube explicar o medo da mãe sobre o pai após o crime e que nunca viu seu pai bater na companheira, mas que viu os dois muitas vezes bêbados juntos.
Em seu depoimento, o réu disse saber do que é acusado, mas não quis falar do caso. Só falou sobre a sua vida. Funcionário público, separado, pai de dois filhos, disse que conheceu Margarida em um baile, há quatro anos, e que mantiveram relacionamento conturbado e que foi preso uma vez após uma briga, acusado de bater nela (Margarida). Sobre o crime manteve-se em silêncio. Felix tem 59 anos.
Para promotor Atila Lopes, que atuou na acusação, foram três crimes, três vítimas, sete qualificadoras - dois duplamente e um triplamente qualificado. Durante sua explanação, a Promotoria apresentou fotos da perícia criminal e relatos dos fatos daquele dia. Nesse ponto, pais e familiares das vítimas, presentes no plenário, se emocionaram.
Segundo a acusação, que não tem dúvidas da autoria do crime, Félix teria dito que iria à casa de Margarida fazer um almoço e saiu com uma travessa, carne de frango e a faca. A travessa ficou jogada na cena do crime.
Em depoimento na audiência de instrução, o réu disse que flagrou Margarida - encontrada na sala - e Rodrigo - morto na parte externa da casa - na cama e que o rapaz teria avançado contra ele, quando então desferiu as facadas. "Convenientemente, ele se esquece de muita coisa", disse o promotor.
Continuando, o promotor falou que o depoimento de Felix não condiz com os fatos e não configuram legítima defesa. "Não acredito que alguém desarmado vai empurrar alguém com uma faca. Muito menos que alguém em legítima defesa de facadas em regiões letais", observou.
Sobre a Margarida, o réu confirmou que a matou por que estava sendo traído. Sobre Zélia, outro depoimento que não condiz, conforme a acusação, as provas mostram o arrombamento da porta e a morte da vítima encurralada, enquanto Felix diz que ela avançou sobre ele. Outra testemunha confirmou que Zélia costumava ficar no quarto ouvindo música. O policial que chegou primeiro confirmou que o celular estava ligado com som alto, e a perícia, o arrombamento. "Zélia morreu sem motivo, apenas por estar na casa durante o ataque de Felix contra Margarida e Rodrigo", disse a acusação.
Depois dos crimes o condenado fugiu, encontrou o filho e outro homem, jogou a faca no chão e disse ter matado dois, três. Nesse ponto, continuou o promotor, fugiu novamente, jogou o carro em um açude, tentou suicídio com golpe de faca no pescoço. Ele foi socorrido e preso em flagrante.
O promotor detalhou as lesões das vítimas, que essas foram em regiões fatais e também aquelas que indicavam tentativa de defesa das vítimas. Ele apontou como homicídios qualificados, por motivo torpe por ciúmes e inconformismo do fim do relacionamento, as mortes de Rodrigo e Margarida. "Sentimentos comuns, não reprováveis e desprezíveis, mas que não são motivos para matar alguém. Isso sim é reprovável e desprezível, é motivo torpe", alegou.
O promotor também apresentou vídeos de testemunhas chegaram primeiro ao local do crime. Elas apresentaram os primeiros indícios do que aconteceu no dia do crime e também relataram o conhecimento geral do relacionamento conturbado, do fim e dos ciúmes. Também falaram que das ameaças e que novo relacionamento de Rodrigo e Margarida, cujas conversas teriam iniciado na semana anterior e a primeira vez que se encontraram aconteceu o crime. "Apesar da inexistência de testemunhas que presenciaram os fatos, fica claro a autoria dos crimes e a intenção de não deixar testemunhas", disse o promotor.
Um policial confirmou, que ao fazer a prisão de Félix, depois violenta agressão física, foi ameaçado. Outras testemunhas também relataram que ele afirmava pela cidade de que "se ela não ficar comigo, não ficará com mais ninguém". Que a ex-mulher também confirmou que o condenado era violento e fazia ameaças, especialmente quando estava bebendo. "Não foi um caso isolado, ele era violento com as mulheres. Somente contra a Margarida, foram dois registros policiais antes do homicídio", disse o promotor.
Falou de outros processos criminais, um de porte de arma, e responde por lesão corporal contra Margarida, da embriaguez no dia do crime e que ele foi a pelo menos três bares na cidade e bebeu muito, fato confirmado pelo condenado e pelas testemunhas. " Isso é considerado em partes, já que ele lembra detalhes convenientes à defesa, não podendo ser declarado que estava totalmente fora de controle. A justiça deixa claro que se ele bebeu foi por vontade própria. Bebeu para ter coragem, se embriagou voluntariamente para cometer o crime".
"Ele já sabia que a Margarida estava com outro. Não foi pego de surpresa. Ele teve tempo de pensar e premeditou cometer o crime no domingo. Em um bar, segundo testemunhas, afirmou que ia lá matar ela é se tivesse mais gente ia matar também. Era comum ele proferir esse tipo de ameaças quando bebia, por isso não foi dada importância", relatou a acusação.
Assim, ele apontou as qualificadoras para os três homicídios: dificuldade de defesa, golpes em regiões letais e uso de arma branca contra vítimas desarmadas. E por fim, pediu a condenação por homicídio duplamente qualificado de Rodrigo e Zélia e triplamente de Margarida.
Emotivo, ele finalizou dizendo que morreram uma mulher, um pai jovem que não sabia onde estava se metendo, uma jovem que tentava a vida aqui e, naquele domingo falava pela primeira vez com a mãe em seis meses naquela domingo. O promotor chegou chorar ao pedir a condenação.
O defensor público, Rodrigo Sater, indicado para defesa de Guaragni, apresentou depoimento de vizinho, que emocionado lamentou o envolvimento das duas famílias, de Félix e Margarida, em um crime tão bárbaro. Foi nesse momento que o réu também se mostrou emocionado, como se lembrasse da vida antes dos crimes.
A intenção do defensor foi mostrar as outras versões das vítimas e do acusado, "Não estou pedindo absolvição. O réu matou, matou três pessoas!. Ele tem que ser condenado, mas pelo o que aconteceu, sem socar sete qualificadoras nas costas", disse o advogado.
Sater defendeu o caso como homicídio emocional em razão de ciúmes e traição. "Onde, transtornado, após o flagrante de traição cometeu o crime em um ímpeto de fúria", defendeu ele.
A defesa também tentou derrubar a tese da acusação de qualificadora por motivo torpe, afirmando que ciúme não se caracteriza como torpe, para isso citou casos, publicações e jurisprudências que confirmam sua tese de desqualificar acusação. Quanto à qualificadora de que o condenado dificultou a defesa das vítimas, o defensor disse que existem indícios de defesa e de luta corporal. "O crime foi bárbaro, teve inúmeros golpes, mas quem quer matar não vai dar um só golpe. O crime com faca choca, mas os laudos mostram ferimentos causados em reação de defesa", ressaltou.
Na qualificadora do feminicídio, Sater afirmou que isso ocorre pela simples discriminação de gênero e não por ciúmes e adultério.
Finalizadas as explanações de acusação e defesa e apresentações das provas e testemunhas, os jurados saíram do plenário para proceder à votação. A missão deles foi de dizer sim ou não para a condenação do réu e para cada qualificadora que consta na denúncia. Esse processo e a finalização da sentença pelo juiz levam cerca de uma hora.
Juiz, promotor, defensor, réu e jurados retornam ao Salão de Júri para leitura da sentença. Às 15h40 o juiz Márcio Cristófolli anunciou a condenação do réu Félix Guaragni por triplohomicídio, de Margarida duplamente qualificado, e das outras duas vítimas, como homicídios qualificados. A qualificadora de feminicídio não foi aceita pela maioria dos jurados, mas reconhecida como violência doméstica pelo juiz que acrescentou a pena.
A pena é de 30 anos pela morte de Margarida, 24 anos pelo homicídio de Rodrigo e 24 anos pela morte de Zélia. Totalizando, são 78 anos de prisão em regime inicialmente fechado pelos crimes cometidos naquela triste tarde de domingo, 22 de janeiro de 2017 na pequena Barra Bonita. "Pelo modo cruel e perverso dos crimes, foi fixada a pena em cada qualificadora. O fato de ser pessoa tranquila quando não bebia não atenua e ser alcoólatra não justifica. O seu comportamento, além das vítimas assassinadas, colocou em risco outras pessoas pela conduta violenta daquele dia", explicou o magistrado, que reiterou ainda todos os ferimentos sofridos pelas vítimas, os golpes em pontos vitais e a carnificina registrada naquela casa.
Ainda foi fixada indenização de R$ 150 mil para a família de cada uma das vítimas a título de dano moral. Foi negado o recurso em liberdade.
O Júri foi encerrado pontualmente às 16h.